Por muito tempo, tecnologia foi sinônimo de infraestrutura. Era aquilo que sustentava o funcionamento das empresas, otimizava fluxos e tornava operações mais eficientes. Mas essa lógica já não é suficiente para lidar com um mundo em que a mudança se tornou permanente. A tecnologia, hoje, define o próprio negócio. É vetor de transformação, imaginação e construção de futuros possíveis.
“Quando a tecnologia migra e se dissemina, precisa ganhar espaço nas nossas construções”, diz Kim Trieweiler, pesquisador da Guilda e especialista em Futures Studies.
“Acredito que ela é uma amiga do lugar e, ao mesmo tempo, ainda não entra no centro da discussão estratégica fundamental ou de novos negócios. Então, é preciso trazê-la para o centro da conversa de uma forma mais intencional”, complementa Trieweiler.
De ferramenta a vetor de transformação
Na transição do digital como suporte para o digital como estratégia, há uma mudança de mentalidade. As empresas que mais crescem não perguntam apenas “qual tecnologia usar?”, mas sim “qual futuro queremos habilitar?”. É uma diferença sutil, mas profunda, que separa a simples digitalização da verdadeira inovação.
“Está no cerne da ideia de digitalização”, explica Kim. “Porque digitalizamos processos, e ao fazê-lo, estamos transformando um processo que já existia em um processo 2.0. Entretanto, não entendemos que essa mudança transforma completamente o negócio.”
Ele cita o exemplo dos e-commerces, descrevendo o modelo digital de venda apresentado por muitos deles. Ao comparar com uma loja física, aponta as similaridades:
- E-commerce tem um carrinho de compras;
- Banner que lembra uma vitrine;
- Números das peças.
“Ele parece muito uma loja física. Mas existem modelos de negócio que são plenamente digitais.” Esse tipo de pensamento amplia o escopo da inovação: deixa de ser apenas melhoria contínua e passa a ser criação de alternativas reais.
Inovar é criar alternativas
A ideia central dos Futures Studies, campo em que Kim atua, é justamente essa: enxergar a inovação como mecanismo de criação de alternativas. Cada nova tecnologia, seja IA, blockchain, realidades imersivas ou biotecnologia, amplia o campo de possibilidades do presente e redefine o que entendemos por valor.
“As tecnologias não podem ser um acessório”, reforça Kim. “Elas têm que entrar no centro da discussão e no centro do negócio. Cada uma dessas tecnologias habilita negócios de forma diferente.”
Ele menciona a realidade aumentada como exemplo dessa diversidade de usos:
“Se eu pensar isso dentro de uma indústria, por exemplo, já existe aplicação em que a pessoa que vai consertar uma máquina vê ali o que precisa fazer e é guiada no conserto através do óculos de realidade aumentada. Mas podemos pensar também na realidade aumentada no e-commerce de moda, em que a pessoa já experimenta a peça antes. São usos completamente distintos de uma tecnologia muito parecida.”
A conclusão é clara: tecnologia não é só para otimizar, é também para criar alternativas.
Futuros possíveis e a valorização da incerteza
Os Futures Studies propõem uma inversão na lógica empresarial: em vez de prever o amanhã, eles buscam projetar futuros possíveis. Essa abordagem combina análise e imaginação e pode transformar empresas reativas em organizações exploratórias, capazes de liderar o que vem a seguir.
Kim explica que o primeiro passo é tornar as equipes “mais letradas em futuros”. “O caminho é explorar todo o conteúdo disponível em diversas plataformas. A inovação já é uma temática mais difundida, e muitas pessoas conhecem seus métodos. O mesmo precisa acontecer com os estudos de futuros.”
Mas ele alerta que pensar o futuro exige algo mais difícil: apreciar a incerteza. “O Ayalon Milgram fala que normalmente tratamos a incerteza como algo negativo, mas é na incerteza que existem espaços de transformação importantes. Quando buscamos tendências, geralmente estamos buscando certeza e aí acabamos criando o ‘mais provável’.”
Nesse contexto, a ambidestria organizacional se torna essencial: melhorar o que já funciona bem, mas também explorar novas alternativas. “Esses cenários alternativos são futuros possíveis”, resume.
Propósito e tecnologia como aliados
Casos de empresas como Patagonia, Itaú e Natura mostram que é possível combinar propósito e tecnologia de forma autêntica. São organizações que experimentam novos modelos, prototipam futuros desejáveis e inspiram outras a seguir o mesmo caminho.
“Essas empresas criam um senso de possibilidade”, observa Kim. “Porque, muitas vezes, até alguém fazer pela primeira vez, achamos que é impossível, que ninguém compraria, ninguém faria. Quando vemos uma empresa fazendo, ganhamos um senso de permissão: ‘Se eles fizeram, eu também posso.’”
Essa “permissão para imaginar” é um combustível potente para a inovação e também um lembrete de que a tecnologia deve habilitar futuros no plural, não apenas um único caminho.
“Passa por criar futuros que não eliminem outros futuros”, diz Kim. “Futuros que não impeçam outras pessoas de existir e atuar.”
Do hype ao sentido
Em um mundo guiado por tendências, talvez a pergunta mais relevante para líderes e empresas seja também a mais simples e a mais difícil:
“Estou investindo nisso porque todos estão investindo, ou porque isso é importante para o meu negócio?”
Como lembra Kim, “os negócios, às vezes, se inflamam pelo hype e perdem o foco e, quando isso acontece, vem também o desencantamento.”
Pensar o futuro, portanto, é mais do que acompanhar movimentos tecnológicos: é dar direção a eles. É enxergar a tecnologia como mecanismo de imaginação estratégica, uma aliada na criação de alternativas que ampliam o campo do possível.
E talvez essa seja a pergunta que define a próxima década: